O vazio da América

A América, esse imenso espaço, descobre o vazio onde caiu. Dos afectos interrompidos aos amores proibidos, lugar agora para todo um país questionar o seu papel nesse lugar que não tem fim. E está a fazê-lo da melhor forma num filme que ganhou o Óscar e noutro que o ia ganhando. Às fronteiras do país, hordas de imigrantes chegam de todos os cantos para descobrirem o vazio do dólar, a fealdade de cidades onde a maior atracção é o café de bomba de gasolina à beira da estrada e onde empregadas louras e sobrealimentadas servem ininterruptamente um café de escolateira. Depois do sonho do Oeste, da conquista bárbara e bruta de territórios indígenas, depois da supremacia protestante e anglo-saxónica, são cada vez mais as minorias que lentamente se tornam maiorias e questionam o seu papel na América, o seu lugar num mundo que nunca parece ser o seu. A América, como todos os países de imigração é o paraíso possível, mas nunca conquistará esse lugar. O paraíso parece ter ficado lá longe, à espera desses imigrantes o deixaram e que raramente voltam. O paraíso foi abandonado e trocado por um outro feito de neons e salas-de-jogo cintilantes, em cidades onde novos-ricos e novos pobres se forçam num convívio feito de desigualdades. A língua dos Estados Unidos da América não é o inglês ou o english american. É o chinês obstinado e dado a malentendidos, o irlandês rufião e amargurado de quem deixou a voz num pub de Waterford. É o português com sotaque a bacalhau à minhota, o polaco que perdeu a sua genuidade e a sua alma numa garrafa de vodka comercial e absolutamente marado. E é cada vez mais o spanglish. A América nunca encontrará totalmente o seu destino, já que é feita de destinos díspares, um país onde a lei da fala é substituída pela lei da bala, onde mais facilmente se dá um tiro do que um bom dia, onde o apego à terra conquistada, à nota verde causadora das invejas não parece deixar que uma outra realidade se sobreponha - a realidade dos afectos, do respeito que se impõe.
Não consigo ver a América com os mesmos olhos com que vejo uma França, uma Dinamarca ou uma Alemanha. Não lhe reconheço profundidade e admito que é preconceito. Os meus amigos americanos que me perdoem, mas ainda não consegui ultrapassar esses mesmos preconceitos e desfazer essa ideia que tenho de uma América que não me seduz, já que não só de dólar vive o homem e confesso que tremo de pensar que nessas ruas um grande maioria dos transeuntes pode ter legalmente uma arma, esteja ela na algibeira ou na gaveta da mesa-de-cabeceira.
Depois de ver Crash, Brokeback Mountain, Desperate Wisewives ou American Beauty sou acometido por uma réstea de esperança. A América afinal sabe pensar. Confessa-se e penitencia-se, e fá-lo melhor quando colocao de parte o fanatismo religioso. Os melhores filmes americanos andam a tentar repor alguma justiça e profundidade na mente de todos. Desse país que pela força do seu imperialismo comercial dita influências, espera-se agora a redenção. Que se redima e nos ajude de devolver a decência. A América só será atractiva e apelativa quando deixar de ser uma nova-rica interesseira e se portar com a dignidade que deve ter, ela que é responsável por dourar os sonhos de milhões de desesperados.